sábado, 18 de agosto de 2012

Jairo imóvel



Parou tudo.

O nome dele é Jairo. E o seu joelho é uma articulação falida, igual ao braço da janela enferrujada. Estacado, reclama uma dor aguda.

Não olha para nada. Pensa pouco. A geladeira ronca de fome.

Jairo não tem certeza se o coração bate. O outro joelho nunca deu problema. Nunca que rompeu nenhum ligamento. O canhoto é de menino, suporta qualquer pulo, degrau, chute, transa.

O coração bate lento, mas bate.

Da posição que ficou, ficou ruim. Ficou de costas para tudo. De frente a uma janela que mal abre. Defronte a uma casa sem movimento.

Televisão ligada. Não consegue escutar direito as notícias. Pode ser propaganda, e não perde nada se for.

Não tem inveja dos tênis dos outros. Não sente vontade de comprar nenhum tênis com amortecedor, por exemplo. É mentira, muito efeito especial, corte, truque do espelho. Acha bobagem, pode até mudar o canal, ou colocar no mute quando aparece uma propaganda ridícula dessas.
Jairo, Jairo, Jairo…

Ficou ruim. Mas não pode terminar o passo. Está sinucado por um joelho que já foi responsável por muitos gols.  Um joelho de ouro. Sempre há um indício de estalo.

Quando o pulmão respira, o joelho de Jairo range no lugar, um rangido demorado. O médico diz que não tem mais quase nada entre os ossos. É osso no osso, e o pobre aperta os dentes. Tem algo importante na tv.

É arriscado virar o pescoço.

Da televisão, só enxerga a luz. Parece que instalou uma discoteca dentro de casa. Como o volume está baixo…

Eita! Hoje tem futebol? Faz tempo que não acompanha, só sabe dizer dos jogadores que aparecem muito como Neymar. Jogador completíssimo, no seu critério. Faz muito mais do que Pelé já fez. Neymar dança, faz propaganda de shampu, celular, é ator, modelo, aparece em clip de pagode, faz uma música fazer sucesso. Um jogador completo. Pelé fez o que? Um disco?

Quando era pequeno foi o primeiro a se inscrever para o papel de José, no auto natalino. Posição importante na cena. Pai do personagem principal, que seria um bebê, provavelmente um boneco.

Não, foi um bebê mesmo. Que chorou a peça inteira.

Assim que recebeu a roupa de José,  pegou o script e não tinha uma fala sequer. Reclamou, fez birra e ganhou uma linha. Uma linha? Achou pouco. Mas fez. Bateu o pé de raiva e disse em voz balbuciada.

Eis aqui o filho de Deus.

Que revolucionário, pensava agora. José nazareno assumindo a não paternidade do seu filho célebre. Talvez para barganhar o ouro e as outras especiarias dos reis, quem sabe. Filho meu coisa nenhuma, filho de Deus! E tome ouro, mirra, e tome incenso. Mas aquela raiva imprimiu um certo desconforto de José na cena. Uma vontade secreta de ser o pai verdadeiro daquele ser calorento, cheio de catarro, que tirava a atenção de Maria para ele.

Maria era Giovanna. Uma graça de menina.

Mas por que isso agora?

Sim! Lembra que passava a peça inteira como uma estátua de presépio. Ajoelhado em um chão lindo, um azulejo formado por mosaicos. No final dos ensaios, os mosaicos ficavam marcados nos joelhos avermelhados. Uma dor latente, que só a presença de Giovanna fazia suportar.

No dia da peça, levou joelheiras por baixo do manto. Toc, toc, quando ele se ajoelhou e sorriu no canto da boca.

Uma estátua de presépio. Hoje está mais para o Homem Caminhando, de Giacometti, que viu na Pinacoteca de São Paulo.

Uma coisa mais moderna, um passo inconcluso. 

Não sabe, não lembra do que foi fazer ali. Talvez verificar o braço da janela. Tentar ver se consertava com óleo, alguma coisa.

A campainha toca.