terça-feira, 10 de dezembro de 2013

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Júpiter
vaza início do projeto inacabado, mal começado
favor não divulgar,
curtir ou falar disso.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Trovoada



Milhões de pingos paraquedistas nesse céu nublado. Inunda o Recife e o povo daqui é daqueles que se abriga e corre com medo; enquanto o sertão ainda torra numa seca desgraçada que emenda uma na outra e lá se vai mais um ano com aquela mesma pedra de sal na janela. Aqui chamam o tempo de tenebroso. Quilômetros cúbicos de água doce desabando de graça na cidade, alagando ruas, quebrando sinal, cobrindo calçada, derrapando barraco...

Pergunto ao asfalto impermeável e às valas cheias, pra onde tão levando essa água toda? Não basta esse desperdício de pedra e piche, onde nada se planta. Vai a mão e arranca o capim entre o concreto. Não basta esse tapete preto feito para cuspir fumaça e arder nos dias quentes. Pra onde tá levando essa água boa?

Pra se misturar com bosta, é isso? Cair no canal, correr no mangue, passar no esgoto e do rio pro mar. É bom perguntar aos telhados das casas, ao cume das torres, àquelas calhas ligadas feito bicas. Cês sabem que lá nas brenhas, lá pra dentro, onde a memória se corta de espinhos, as cisternas do governo tão cheias de eco; ocas casas de aranha cheirando a poeira.

Tá na hora do Capibaribe correr ao contrário, acha não? Levar em canos essa água muita...

Pois desde hoje que o som é de cachoeira. A gente sem querer se molhar. Já caiu mais de três São Franciscos, falta cair o barco, a carranca e o barqueiro. A nuvem não quer se chegar pra lá? Aqui todo mundo reclama. Lama destrói, lodo escorrega, carro boia, coisa dá choque, não tem mais aula... Bem, uma coisa boa...

O asfalto - desculpa falar de novo do asfalto - o asfalto cede nessa terra de mangue, faz cratera que parece início de fim de mundo. E o povo ainda lembra de setenta, achando que Tapacurá vai explodir, que vai perder a geladeira...

Pois pronto, então faz um teto fumê em cima disso tudo, pessoal vai gostar. Usa os prédios como pilares, escoa tudo pra onde merece.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Tagarela





Língua mole,
fale,
rebole,
trepide
entre os dentes,
lamba as letras,
deleite palavras,
pule no léxico

e
descanse
um pouquinho
aí em baixo,
isso...
antes que venha alguma
ou qualquer coisa,
quem sabe
um assunto

pra tu trabalhar pra caramba, maluca

---
*Recomenda-se ler em voz alta e língua obediente

terça-feira, 30 de abril de 2013

Auto mar



Ninguém se deu conta que tinha o menino no mar. Que o peixe agulha furou as bóias dos braços. Que veio puxando a correnteza feito aspirador, a água engolindo salgada.

Depois deitou. Alto mar rugindo mansinho. Tossia e se equilibrava na superfície.
Um toco de amarrar navio prendia o pelicano.

Na praia as ondas dizendo não não não chegou ninguém para acudir.

A lua é uma bola que pode sair de noite, pode sair de dia. 
O mundo é outra, pendurada numa coisa vazia.

Deitado no colchão do mar. Estrela de dia e lua no céu. A calmaria durou pouco. Logo veio uma onda gigante, expulsando o papudo do toco. Voou. O menino e seus braços-palito de volta para a roleta, girando sem fôlego nem destino. Sorte então, nenhuma.

No fundo, um tubarão brilhando os cento e cinquenta dentes. Bufando bolhas pelas guelras. Quando abriu a boca, se viu dentro da garganta. 

O tubarão não tem corda vocal. Dentro daquela boca tudo é oco. Só o grito do menino vinha rebatido lá do fundo. 

Na primeira mastigada aparece o anel do pirata brilhando ametista. Na segunda, um dente cai e logo brota outro por cima. As dentadas firmes, dentes caindo e crescendo; se botasse as mãos por baixo pegaria vários, afundando como moedas.

A unha suja do pirata apontando para a superfície. Nadou para o alto.

Um dos peixes combinou com o cardume de correrem todos com os olhos fechados. 

O pelicano mergulhou faminto. Atrás, o monstro mastiga sem precisão. Na sétima mordida, triturou mais de trinta sardinhas vendadas por sargaço. Até ficar satisfeito.

Sobe o pássaro com o menino na boca. Alto bastante para ele sentir o vento na queda.

A terra é redonda e azul. Vista de cima pode ser verde, amarela, cinzenta. Mas a grande parte é azul. E o vento invisível no rosto.

Caiu desacordado, até as ondas o levarem para a areia feito uma mãe jeitosa.
Cinco pontas tinha a estrela do mar alaranjada. Estiradas na praia.

Cinco pontas magrelas. Acordou com as mãos em concha, cada uma repleta de dentes brilhantes. 

Deitado na grande bola. Olhando para a pequenina, que brilhava esfumaçada. De barriga pra cima no convexo do planeta. Areia um gelo de fria. O dia acabando quieto.

O universo gira ao redor da terra parada.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Tom ion ioin


obama,
kim e o papai
doidos da vez
bando de molas torpes
em tudo que é canto
bem moles vão toin
na cabeça
e bum la no chão
tal qual ioiô
que torna de volta
na palma da mão
do dono do jogo, pergunto
quique tem eu com a
coreia do norte e
os eua, lá vem,
sou eu e a
babaca
doença
caída
do
s
out
rrr
s

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Labirinto



buscando, cade?
já desprendi
pé sem ta no chão,
mão sem ta em ti

o cabra pressente essas coisas
bater de cara com um labirinto
três mil entradas, uma só saída
negócio

é fechar os olhos
ir sacando o cheiro
fuçar cada portão

postar a mão no muro
dedos deslizando
cego em pasmaceira

não levar novelos
e já que tem pombo
é bom poupar o pão

parede gelada
textura de pedra
com trepadeira

concreto entre
prego batido

se te espetar
um espinho da rosa,

sugue o sangue
com o bico da boca

e espie a flor
com um olho só

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Topada




tem gente
sabendo um bocado
mas no geral, nós,
o destrambelhado
sujeito do acaso -
meramente,
assustado,
topando futuros
e arrombando a ponta do dedão do pé,
metendo com a cuca na quina,
testa no galho,
tá! no batente
canela que tei! na mesa de centro...

Eis que se ergue lento o arroto tonto da alma
um grito-siêncio,
aperto que lateja, cala,


confirma
toda
existência

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Veneno





Acordou tossindo alto
botou a mão e sentiu pulsar
uma dor no pescoço
olhou no espelho:
vermelha
e rubra

Mordidas simétricas feitas
por um casal de mosquito
bebendo e amando-se
na nuca
toda madrugada
um tinto gelado,
bafinho quente,
ronco esquisito,
zumbindo no oco do ouvido

Foi quando acordou preocupado
engasgando no espelho
Dois pontos vermelhos!
doídos,
picada de serpente
finas agulhas e
o queimar do veneno
- placebo no sangue -

passou o dia tonto, prostrado,
pensando que fosse morrer

segunda-feira, 25 de março de 2013

Professora



Última foi a vez,
giz riscando o quadro,
unhas pontudas, sangue entre dedos,
giz no quadro negro!
Garra agarrada ao pescoço,
pelo, pele, garra e osso,
apertam de esmalte, dez bisturis.
Gemido tímido
no pé do ouvido
ruído que fere,
agulha no vidro,
vinil arranhado,
assobio de bala,
som de giz
rasgando tudo
e nunca mais

segunda-feira, 18 de março de 2013

Procura-se emprego



Deposite a moeda
que acaba a preguiça
se a engrenagem enguiça
tenho a solução

Insira o cartão
assine o cheque
me abane com um leque de notas de cem

Aceito diamantes
ou barras de ouro,
tesouro pirata, moedas de prata, 
marfim africano, quadro de Picasso,
escritura de prédio, mansão ou palácio,
pérola negra, barrís de petróleo,
direitos dos Beatles,
ações da Natura,
iate, helicóptero, Ferrari, avião,
um jato da Nasa que passe as barreiras do som...

Tem não?
Então se tiver um lanchinho tá bom…

---
*para Totó

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Notícia

Um descalço. Outros dois calçados. Um, a fuça do outro.

E vinha bufando, narinas fervendo. Soprando tão forte, que os fios do bigode espalhavam no rosto e se dividiam a cada tufão. Este é o mais velho, foi o último a chegar com a notícia entalada.

Os outros dois, imberbes, tinham escutado a respiração de longe. O irmão cansado, camisa encharcada, pernas tremendo, coçando um sangue que não costumava mais circular naquela velocidade.

Sol na moleira! Ar de secar garganta. Tentou respirar só pelo nariz. Botou na cabeça que quando abrisse a boca falaria de vez.

De longe via os dois irmãos, bem pequenos. E quando a angústia dava um nó no estômago ele apressava mais o passo. Olhava para o campo de futebol de areia quase vermelha. Pensou ter visto uma cachorra cruzando o jogo, atrapalhando a bola. Abriu a boca sem voz. Trouxe o ar empoeirado de uma vez pra garganta. As pedrinhas caíram pela traquéia e ecoaram nas paredes do pulmão.

Os irmãos notaram como estava vazio de força. Pernas bambas. Vinha chegando de olhos baixos.

Por um acaso os dois estavam ali juntos. O do meio veio falar com o mais novo, que sabia onde Dorinha estava. Mas antes de qualquer resposta, emudeceram olhando o mais velho vir correndo daquele jeito.

Dorinha não aguentou, ele disse, sem fôlego. E ninguém falou nada. O mais novo catou alguma coisa que pudesse dizer, sem que a fala o derrubasse em lágrimas. Ensaiou ''quan...'', no que o mais velho respondeu seis. O mais novo sorriu. Ela deu seis filhotes.

E como são? Perguntou o do meio.

Todos engraçadinhos.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Bicicleta, o cão




Ele senta no computador. O ventilador bem em cima da cabeça. Girando. Se levanta, pega a camisa no cabide, coloca ao contrário. Volta a sentar.

Sente que o peito aperta; algo entre a guela, pomo, pescoço. Etiqueta na frente. Feito corda de algodão estirada. Era a camisa ao avesso.

Curta, sem manga. Ele cruza os braços por dentro do pano. Trocando os braços morenos por dentro do pano. Cada braço prum lado; mudando os lados dos braços. 

A cabeça pulou fora, a camisa deu um giro… meio giro… Cento e oitenta! Lá em cima. Camisa preta e mãos ao alto.

Um estalo.

Dois braços bailarinos. Esquerda na esquerda! Direita na direita! Pousam pondo a camisa e a cabeça no lugar. Não pode encostar na cadeira.

A manga curta. Sem manga. O suor já seco. O ventilador passou tanto tempo insistente que tinha secado todo suor.

Abre um documento de texto.

Ciclista, apareça! Vamos mostrar que existimos. Que estamos presentes. Que, de qualquer maneira, não sou obstáculo. Não sou brincadeira. Caio, sou caco. Cuido do peito, corro no asfalto. Tombo, me arranho, me quedo na grama com a alça do cachorro presa na roda. A coleira, colina, grama, jardim… Menina! Vai se machucar! Assim você se machú... Cuidá...

E o cachorro rola abaixo, ela capota por cima. Pula fora, grito, ui, e risada. 

Chora. Um susto, não foi nada! Limpa aqui, acolá. Vai sarar… Vai secar. Que besteira, que chorona! Nem parece que tirou as rodinhas!

Veja, mamãe, nem quando a coleira aperta, o cachorro late… Oooolha, ele também tem uma ferida. Já deu o nome dele?

Não sei… Bicicleta! - Tá doida, menina?

A risada comia no centro. Era de um tempo em que mertiolate ardia. Não tinha problema! Se a ferida de Bicicleta não arde, a dela também nem doía!

Não foi nada, tá vendo? Não foi nada...

Sem que pudesse encostar o braço no braço da cadeira, ajusta a coluna no encosto. Abaixa a luminosidade da tela. A queda do cotovelo… O asfalto é pior que colina. Estava inteiro. O braço arranhado. Doído… Com sede, cansado, mas isso é todo dia mesmo, isso não tem nem problema.

A cadeira do computador… Ficou até mais fácil dele andar, rolando a cadeira no chão liso. Indo até o outro canto do quarto, passando na porta, pelo corredor, na sala e cozinha, toc, toc, toc, agora o chão de azulejo.

Abre a geladeira e pega uma garrafa de whisky cheia de água gelada. Faltava um banho. 

E coragem pra banho?

Depois de alguns goles, derramou - molhando o chão mesmo - a água gelada nos arranhões. Preciso entregar o texto pra editora. Saiu mais cedo do bar. Sem pressa, tranquilo… Filho da pú...

Mas ainda precisa entregar o texto para a editora. Nem foi nada. Podia ter sido… Saiu tremendo na rua. O motorista voou na frente, nem nada. Ele demorou pra limpar a areia do braço...

Ela sonhou outro dia com algo estranho. Dormia na cama, ao lado da mãe. A mãe dormindo e a pequena franzia os olhos, mexia as pernas, algum pesadelo. Um monstro terrível. E um grito bem alto! Seco no som, molhado nos olhos.

QUE FOI MENINA?!

E a menina acordou. Sem lembrar nada. Tá ardendo é, filha? Ela nem ouviu, virou os olhinhos, voltou a dormir. Deve ter tido um sonho melhor depois.

No outro dia, brincando com Bici. Mamãe, lembrei!

E contou que era um redemoinho de vento, colorido de longe. E ela chegava junto, e tudo começava a subir, poeira, terra, bem rápido, tudo ficava escuro e puxava as rodinhas da bicicleta.

Mas depois me puxava também, mamãe, depois é que me puxava forte.

Você quer, a gente coloca as rodinhas novamente, quer?

Não, não sou medrosa!

Depois de um acerto, um acordo firmado, passou a andar com o pé escorado no lombo de Bici. Não sabia quem tinha o comando. Se ele corria para a direita e ela girava o guidom pro outro lado, tombariam no centro. Quase só aconteceu uma vez. Ainda bem devagar.

Lembro que com dois dias eles já tinham um código próprio, direções, direita, esquerda, parar, marcha ré. No terceiro ela trocou o pé canhoto pela mão canhota. Depois do quarto dia, trocou o lombo pela corda da coleira, voltando a pedalar como sempre, juntos.

Os dois com a mesma casquinha nas feridas.

Ele, sem saber terminar o conto. Pensa em tomar a tetânica. Tem medo de estar contaminado por alguma doença da cidade. Ao menos não tem essa, da velocidade.

Vou passar madrugada escrevendo.

---
*Em luto às mortes dessa semana.

sábado, 8 de setembro de 2012

Festa



Papai tem uma fazenda, num fim de mundo. Sequidão e calor dos infernos! Um nada pra fazer gostoso, um sem compromisso, sem barulho, cheiro de terra, cheia de bicho...

Não perdi nada lá! (Mamãe urrava).

Foi quando papai comprou um balão. Cabiam quatro pessoas, no máximo, estourando. E esse negócio estoura? Nossa família, contando comigo, dá seis.

E ainda nem cabe todo mundo! (Mamãe rangia)

Alguém precisa ficar em baixo para fotografar, papai falou. Mamãe não sabe fotografar coisa nenhuma e disse também morrer de medo de altura, que ideia!

Uma coisa, porém, ela se animou. Posso, é? E foi acender o bicho, posso mesmo, né? O balão fez que foi e não foi. Fez que foi e não foi.

Da ponta do isqueiro, uma brasinha pulou solta, bateu em um galho seco, passou perto da rã, que pulou empurrando a pedrinha de calor... A brasa rolou até parar na lona vermelha, quase cheia.

Tá queimando, tá queimando! Queimou! Espalhou fogo na caatinga, matou cinco vacas, abriu uma clareira. Acabou-se balão. Acabou foi tudo... Papai furioso, apagando o incêndio com lágrimas de raiva. Uma sequidão e calor, pior que os infernos.

Churrasco para todo mundo! (Mamãe sorria)

E foi uma grande festa na fazenda.

---
*para a baloneta.

sábado, 1 de setembro de 2012

A briga


Vi dois meninos brigando na rua hoje.
Na rua não seria possível, seria miragem hoje em dia.

Estavam numa praça, ok. Eles estavam lá sim.

Um deles rodava pião e era engraçado. Um menino de hoje querer algo com pião...

Mas essa história é assim, eram dois meninos nessa praça e um deles tinha um pião na mão.

E era incrível! Uma coisa de louco. Equilibrista em corda bamba, bailarino emadeirado na palma da mão.

Não deve ter sido hoje e eu disse que tinha sido. Foi um dia, nessa praça bonita, sabe? Tinha uma mulher lendo um livro, tinha cachorro e a coisa toda…

O menino do pião e um outro de controle remoto e um carro que andava sozinho. Um carro engraçado, fazia um zumbido, vertia obstáculos.

Claro que devia dar algum fascínio, diante de um pobre pião, um carro de controle? Que coisa mais amadurecida, não é? Coisa de adulto, um carro.

Mas nada, menino. O muleque era craque. Equilibrava o peão no dedo mindinho da mão e do pé!
Era o cão! Ia lá ter inveja de carro coisa nenhuma!

O do carrinho só tinha o carrinho. Enjoou. Enjoou de ficar sentado, controlando de longe. Não sei o que deu no encapetado que jogou o carrinho pra cima do peão do outro.

Normalmente isso não quebraria, não seria possível. Mas esse peão, não sei, o peão dessa história se espatifou em cinco pedaços.

E o prego escapuliu e furou o olho do menino que dirigia o carrinho! Furou não... mas devia!

***

Um amigo estava furioso. No trânsito. Ficou preso, assistido um bando de ativista em protesto.

Perguntei, o que é a vida lá fora, meu velho? Não é esperar para ver os pequenos protestos de meu deus? Quando a nuvem protesta com o céu e forma a chuva? E a luz protesta contra sua brancura, cruza a chuva e faz o arco-iris. O dia com a noite, o céu e o chão... Estou sendo romântico de mais? Podia saltitar um pouco, para a coisa ficar mais engraçada. Falo assim, de braços abertos, que tal?

O bem e o mal... Certo errado... Não sei.

Criamos os filhos para que eles comecem a protestar um pouco contra nós mesmos. Era sobre o que o danado desse protesto?

Era... Ciclistas... Um deles usava uma roupa muito engraçada, cê precisava ver.

Perdi… Era muito assim?

Tinha umas duzentas. Coisa de louco, uma atrás da outra correndo, um cardume... E o trânsito parado por elas.

O trânsito não para todo dia?

Só uma semana depois fui saber do ocorrido. Dos carros buzinando em frente ao hospital público. Que vergonha para um pai de família que dava carona ao seu filho.

O menino nem aí, distraído com as bicicletas, fascinado. E o pai rompendo o silêncio com a mão pesada de ódio no volante. Contra quem?

Quebrando o silêncio sacro dos leitos de um hospital. Ainda existem coisas sagradas, não existem? Quem precisa de paz pra se curar é incomodado com quem também precisa de alguma paz de espírito. Me dá um pouco de medo.

São a essas pessoas, confusas, estressadas, impacientes, intolerantes… São para elas que entregamos máquinas de toneladas.

Que reservamos terra infértil para a sua passagem. Olha! Que coisa! Tapete de piche, vossas majestades!

Não existe protesto que não incomode.
Se a massa quebra, deixa de ser massa.

A coisa quando engrena vira uma centopéia,
duzentoscleta,
centoscleta,
ciclotopéia,
centicicleta,

é uma coisa andante, só. Com aquele grito único, aquele pedido do fundo. Da voz oca, na beira do estômago.

Um grito, talvez, que vem do frio na barriga! 
Daquele medo da morte, quando um motorista inconsequente passa raspando.
E ele fica entre o abismo das valas de esgoto e o touro de metal e fibra de vidro.

Um frio na espinha pensar uma coisa dessas!

***

Na minha cidade, a coisa não é assim, sabe?

Minha cidade as ruas são gramados. Não tem carro, tem futebol. Cocô de cachorro é adubo. E tomate dá na esquina.

Só os trilhos ligam ponto a ponto. E param sempre no ponto. Estão sempre em ponto. É assim e pronto, hehehe... 
Não se paga gasolina, o bicho é elétrico, uma coisa de outro mundo!

Ah, o rio é limpo! Vou comprar meu caiaque, que é a bicicleta de água doce.

Penso em voltar pra lá. Tem gente por aqui, nessa cidade grande e grotesca, que pensa que tá crescendo na vida.
Preso, numa saleta, de som e ar ligado.

Comprou um carro que prometeu velocidade!!!
Viu na propaganda o desempenho, a potência.
Se vê obrigado a ficar parado. É tortura mesmo. Pense.

E os pobres coitados nos ônibus? Pior ainda. Meu deus, se não tivesse tanto carro assim talvez a coisa andasse, não?

O jogo hipnótico, a quantidade de máquina, numa sincronia de rugidos, baforando fumaças, bradando ameaças.
Barbeiro! Babaca!

O que espero é que eles acordem.

Vejam o ciclista na rua, sozinho, sem a massa que gritava, inofensivo, e pense que tudo certo, um carro a menos, eu sou o trânsito, eu não sou exemplo e não contribuo. 

Ou um pedestre atravessando a rua. Sem correr, sem correr, sem correr, não precisa correr, amigo, sem medo...

Pense: fico com raiva do trânsito, mas é isso. O protesto é uma pedra no sapato. Não seria melhor se tivessem mais ciclistas no futuro e menos motoristas? Menos barulho de motor. Menos boca de escape desdentada. Menos bolha social. Mais saúde. E uma velocidade precisa, certeira, na sua vida; tempo único para os trajetos. Um bonde elétrico aqui para longas distâncias, uma magrelinha para as pequenas e médias. Yupiii, até os velhinhos como eu pedalam, que coisa!

Foi assim que conseguimos na nossa cidade, anos atrás.
E depois vieram as outras coisas. A limpeza do rio e tudo mais.

Lá todo mundo anda descalço e, nas horas vagas, é possível ver pessoas passeando só pelo gosto do passeio.
Não é linda?

É mesmo uma coisa! Ninguém briga com ninguém. Ah! Só essa briga de hoje que eu vi. Não foi hoje, foi um dia desses. Eu vi. Numa praça dessas. Mas era briga de menino, briga besta de menino...

Essa pode!

---
*Para a bicicletada do dia 31.08.12

sábado, 18 de agosto de 2012

Jairo imóvel



Parou tudo.

O nome dele é Jairo. E o seu joelho é uma articulação falida, igual ao braço da janela enferrujada. Estacado, reclama uma dor aguda.

Não olha para nada. Pensa pouco. A geladeira ronca de fome.

Jairo não tem certeza se o coração bate. O outro joelho nunca deu problema. Nunca que rompeu nenhum ligamento. O canhoto é de menino, suporta qualquer pulo, degrau, chute, transa.

O coração bate lento, mas bate.

Da posição que ficou, ficou ruim. Ficou de costas para tudo. De frente a uma janela que mal abre. Defronte a uma casa sem movimento.

Televisão ligada. Não consegue escutar direito as notícias. Pode ser propaganda, e não perde nada se for.

Não tem inveja dos tênis dos outros. Não sente vontade de comprar nenhum tênis com amortecedor, por exemplo. É mentira, muito efeito especial, corte, truque do espelho. Acha bobagem, pode até mudar o canal, ou colocar no mute quando aparece uma propaganda ridícula dessas.
Jairo, Jairo, Jairo…

Ficou ruim. Mas não pode terminar o passo. Está sinucado por um joelho que já foi responsável por muitos gols.  Um joelho de ouro. Sempre há um indício de estalo.

Quando o pulmão respira, o joelho de Jairo range no lugar, um rangido demorado. O médico diz que não tem mais quase nada entre os ossos. É osso no osso, e o pobre aperta os dentes. Tem algo importante na tv.

É arriscado virar o pescoço.

Da televisão, só enxerga a luz. Parece que instalou uma discoteca dentro de casa. Como o volume está baixo…

Eita! Hoje tem futebol? Faz tempo que não acompanha, só sabe dizer dos jogadores que aparecem muito como Neymar. Jogador completíssimo, no seu critério. Faz muito mais do que Pelé já fez. Neymar dança, faz propaganda de shampu, celular, é ator, modelo, aparece em clip de pagode, faz uma música fazer sucesso. Um jogador completo. Pelé fez o que? Um disco?

Quando era pequeno foi o primeiro a se inscrever para o papel de José, no auto natalino. Posição importante na cena. Pai do personagem principal, que seria um bebê, provavelmente um boneco.

Não, foi um bebê mesmo. Que chorou a peça inteira.

Assim que recebeu a roupa de José,  pegou o script e não tinha uma fala sequer. Reclamou, fez birra e ganhou uma linha. Uma linha? Achou pouco. Mas fez. Bateu o pé de raiva e disse em voz balbuciada.

Eis aqui o filho de Deus.

Que revolucionário, pensava agora. José nazareno assumindo a não paternidade do seu filho célebre. Talvez para barganhar o ouro e as outras especiarias dos reis, quem sabe. Filho meu coisa nenhuma, filho de Deus! E tome ouro, mirra, e tome incenso. Mas aquela raiva imprimiu um certo desconforto de José na cena. Uma vontade secreta de ser o pai verdadeiro daquele ser calorento, cheio de catarro, que tirava a atenção de Maria para ele.

Maria era Giovanna. Uma graça de menina.

Mas por que isso agora?

Sim! Lembra que passava a peça inteira como uma estátua de presépio. Ajoelhado em um chão lindo, um azulejo formado por mosaicos. No final dos ensaios, os mosaicos ficavam marcados nos joelhos avermelhados. Uma dor latente, que só a presença de Giovanna fazia suportar.

No dia da peça, levou joelheiras por baixo do manto. Toc, toc, quando ele se ajoelhou e sorriu no canto da boca.

Uma estátua de presépio. Hoje está mais para o Homem Caminhando, de Giacometti, que viu na Pinacoteca de São Paulo.

Uma coisa mais moderna, um passo inconcluso. 

Não sabe, não lembra do que foi fazer ali. Talvez verificar o braço da janela. Tentar ver se consertava com óleo, alguma coisa.

A campainha toca.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Chuva de menino



Tomara que chova bem forte,
que a chuva engrosse,
que tome o telhado,
que forme um lago,
emposse as ruas

e em duas braçadas
o menino, a nado,
saia da janela
se jogue no ar.

mergulhe nas nuvens,
dando rasante,
torcendo bastante
pra não estiar

Uma tartaruga
vista de baixo
é peixe palhaço
de guarda chuva

A alga marinha,
largada peruca,
que a sereia careca
sequer quis provar

Tem ostra que esconde
bolinha de gude.
e a minhoca se prende no anzol
com medo, não sabe nadar...

Tomara que chova bem forte,
que a chuva engrosse,
que o céu vire mar.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Vantagens mil



Sem estresse, sem demora. Pode beber, falar no celular, cruzar as pernas e esperar a viagem. Já que o motor não serve mais para nada, você terá duas malas. Espaço em dobro para colocar as compras!

Desenvolvido pelos engenheiros de montanha russa da Disney, o sistema está sendo instalado nas maiores capitais do mundo. Trilhos ligarão toda a cidade, no céu e no chão. De variados tamanho e forma, os vagões podem comportar de 1 a 5 carros.

Os prédios são adaptados para abrigarem as plataformas de embarque. Nada de buracos, nada de ruas alagadas. Zero batidas e emissões de CO2. Não precisa abastecer, apenas pagar uma pequena mensalidade (mais barata que seu IPTU).

As máquinas de toneladas vão passar sobre as nossas cabeças. Em Londres, o sistema começou a ser instalado. Os moradores estranharam no princípio. A maioria, porém, já se acostumou. O asfalto virou grama. Nas ruas, ao invés de carros, sombras passam de cá pra lá. Enquanto isso, os moradores pedalam livres. Jogam futebol, passeiam com o cachorro, se aventuram no skate...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Violão



No canto da sala
deixei o meu violão.
Preso por sete correntes,
deitado e rendido,
o braço atado a ferro fundido
e estaca cravada no chão

Mas é preciso cuidado,
deve-se muita atenção…

São…

Sete cordas vibrantes
serpentes sorrindo
seus dentes
brilhando um veneno
com a boca aberta,
seu buraco negro,
seu bafo que sopra
um eco mortal

No aço cravado no braço
te quebra o compasso.
E se o timbre te toca
te torce o pescoço
trincando as tarraxas,
tinindo os agudos,
cuidado, perigo,

Sssshhhhh!

Te deita no chão!

Os trastes luzentes são garras
O corpo tremendo
já quebra as correntes
e os cadeados

Cuidado! Cuidado!

Perigo!

Pule a janela,
procure um abrigo,
lá vem ele solto,
enfurecido,
é fera, quimera,
um anjo perdido
berrando em bemol!

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Os reis


tantos carros correm
contra o senso de quem dorme
pelo chão

e é assustado a cada
freio, sirene, buzina ou caminhão

quantos matam, morrem,
fedem, ferem, fogem,
cheiram, fumam, cospem,
queimam, pedem, calam,
falam, fodem, correm e...

e, acima de tudo,
por cima de todos,
se amam.

e beijam as
estátuas de bronze
que ameaçam o horizonte
com espadas e bigodes
de alguém que já foi rei!

e nobres
lambem o queixo de dom pedro
generais, santos, sargentos,
beijam a testa de são bento
e Pedro Alvares Cabral!

mas nunca saem no jornal,
na coluna social,
e retornam ao seus trapos,
cobertores aos farrapos
e colchão de papelão.

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Versão musicada por Maurício Oliveira:




segunda-feira, 28 de março de 2011

Vácuo


A brisa passou e roubou a memória dela. Um vácuo de um ônibus que, martelando o ar, levou o cabelo a voar na fumaça escura. Foi só o tempo de fechar os olhos e pronto, não sabia mais de nada.

Não foi um branco total, lembrava das coisas, e do nome das coisas. Sem se exaltar, começou a pensar o que podia em voz alta. Carro, pássaro, janela, prédio, rua, ou estrada, ou pista, árvore... Adentrou-se em coisas mais complicadas como saudade, distância, morte... Colocou a mão no bolso do vestido.

Repetia baixinho "bolso" e "vestido", olhando as pessoas da calçada, "vergonha". Maria de Fátima Aparecida Peixoto era um nome muito estranho para ser seu. "Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores"; um homem na bicicleta passava junto "amém!", ela calava.

O documento devia ser de outra pessoa, aliais, nem o rosto da foto era bem como se recordava.

Numa das mãos, um guarda-chuva fechado em dia de sol. Ao perceber, o abriu com vigor; lembrando de uma notícia sobre câncer de pele.

Devia estar doente. Isso ou as memórias teriam subido no primeiro ônibus que passou.

Enquanto o ponto enchia e esvaziava de pessoas, ela se perguntava o que fazia ali. Talvez se voltasse o caminho, lembrasse de alguma coisa. Pra que lado, pensou imóvel. Os pés estacados no chão; o guarda-chuva sobre a cabeça. Quis gritar.

Os carros zuniam, as motos rugiam e a cada ônibus que passava Maria colocava a mão na testa, cerrava os olhos, mordia os lábios. Nos meio-tempos, tentava não esquecer do que tinha lembrado: "saudade, distância, morte. Ônibus, carro, estrada. Saudade, distância..." Algumas imagens foram lhe surgindo. Nada muito conclusivo. Descascava camadas de esquecimento. "Morte, ônibus, carro, distância, saudade..."

Era como se lembrasse, não a coisa em si, mas a impressão. Uma lágrima escorregava, ''maçã do rosto''. Outra entrava na boca, ''salgado, doce''. O joelho foi ficando fraco e ela logo estaria caída aos prantos no chão.

Olhava os centavos que saiam do bolso, atirados com força na calçada. Ouvia o barulho da chave de casa, o dinheiro voando junto a panfletos de igreja evangélica, a imagem de Nossa Senhora no escapulário... Não se espantou mais com as pessoas olhando. Nem se intimidou com a Guarda Municipal, fazendo ronda ali perto. As contas do rosário escorriam até o fundo do esgoto. Escuro. Tentava, fazia esforço para escutá-las batendo na água podre.

domingo, 13 de março de 2011

Entre a chuva e a fumaça


Havia se estabelecido uma certa rotina no corpo de bombeiros. Em tempos chuvosos a televisão costumava ficar ligada, os militares, menos arrumados. O batalhão reduzido não precisaria se preocupar com as matas secas que margeavam a cidade, mas com as casas sim: as casas ainda pegavam fogo esporadicamente. Foi o chamado. Os soldados correram organizados. A notícia veio chegando no caminho. A chuva tinha dado uma trégua, mas sem problemas, chuva não costuma apagar edifícios.


Dez andares, o fogo vinha do quinto e se estendia entre o sétimo e o terceiro. Uma só vítima. Solteiro, fumante, provável causador do incêndio. O clarão se apagava, as mangueiras eram guardadas, a imprensa ainda tinha pego algumas cenas emocionantes: das pessoas chorando de pijama, cobertor e um casal com roupas de couro. Apenas uma pessoa não foi resgatada com vida, a reporter anunciava.


O dia não tinha sido paciente com ele. Marcos não sabia o motivo, mas não conseguiu fazer nada direito. Tanto no trabalho, manchando a camisa com café, quanto em casa, na cozinha, deixando queimar o ovo na panela. E não comeu mais nada. Ao anoitecer, chovia forte. Teimando que algo desse certo, resolveu ir ao cinema.


A chuva era densa. Somada a uma grossa neblina. A praça ao lado estava escura, os postes se revezavam entre acesos e apagados; outros piscavam numa frequência incerta.


Na rua, viu um homem encostado no muro de uma casa. Fumando. Um vulto. Mudou de calçada.


O som da água só lembrava o medo, de quando era menor e morava no Alto de Santa Teresa: ao primeiro alarido da chuva, sua mãe o abraçava com força, segurando um rosário.


Os degraus da entrada do cinema molhados, a água escorria até o bueiro, que, entupido, enchia a rua com um líquido suspeito. Embora chovesse, a fila era grande. Pessoas aglomeradas se esbarravam com seus guarda-chuvas e sombrinhas. Marcos, de capa, olhava para trás de vez em quando até o momento em que entrou, finalmente, no cinema, os sapatos e a barra da calça encharcados.


Na poltrona, desejou muito fumar, mas não podia. Esperou ansioso o momento de voltar para casa. Esse homem estranho na trama, acho que é um assassino, comentava a senhora ao lado. Marcos respondeu com um olhar e um pigarro. Mesmo não prestando atenção ao filme, o comentário da velha lhe causava calafrios.


Ao acender das luzes, sentiu-se mais aliviado. Não chovia mais. A rua deserta e molhada o fazia sentir angústia. Teve medo de que, se escorregasse no lodo, não pudesse ser socorrido por ninguém. Voltou para casa. Não adiantava mais insistir.


O despertador soava mais alto. Amanhecia de uma forma estranha. Fazia calor. Por baixo da porta, já se via a claridade invadindo o quarto. Com a mesma roupa, bateu com a mão no despertador, que não parou de tocar. Não parou, pois nem chegou a começar. O cheiro de fumaça agora lhe dizia tudo. E o calor invadia seu corpo.


Do lado de fora do prédio, correu pela escada de emergência. Os vizinhos gritavam, choravam, alguns estavam nus, outros de cobertor, pijama, cueca, e um casal em roupas de couro.


Ainda era noite.


O fogo, impiedoso, não escutava ninguém. Marcos, sozinho, calado, botou as mãos nos bolsos, jogou fora a chave de casa e a carteira. Seguiu andando pela rua.


Encostou-se em um muro de tijolos e lodo aparentes. Acendeu um cigarro.


A chuva voltou a cair.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Triste fim


-Eu te amo.
-Ainda?
-Ainda.
-Mas você disse...
-É... Eu disse.
-E agora?
-Você quem sabe.
-Não dá, Tito, já te disse.
-Mas essas coisas mudam...
-Não, não é a mesma coisa.
-É sim... você toma gosto e pronto, em uma semana quem vai estar me amando é você.
-Uma semana?
-Talvez mais...
-Não posso.
-Claro que pode, é só dizer sim, a gente se casa e...
-Se casa?
-Por que não?
-Tá maluco?
-Mas se você me amar, é possível.
-Você bem sabe que não é.
-Sei... Então quer dizer que é isso? Você vai me deixar?
-Você está ficando velho, Tito. EU estou ficando velha... Preciso ao menos dar um tempo.
-Me jogando no...
-Não vou te jogar em lugar nenhum... Lá eles vão te tratar bem, meu amor.
-Tá vendo! Você ainda me ama!
-...
-Você não tem coragem de dizer mas me ama!
-Eu te amo, Tito. Mas ninguém vai entender nós dois. E outra coisa, eu sempre quis ter filhos, com você não posso ter filhos.
-Mas você pode...
-Você sabe quanto é a vida média de um cachorro, não sabe?
-Sei que...
-Pois fique sabendo que uma mulher vive mais que um cachorro... Aí você morre e... Não dá!
-Cain, Cain, Cain...
-Não apele para o choro, Titinho. Não apele para o choro!
-...
-Agora senta! Dá a pata! Bom menino...

domingo, 30 de janeiro de 2011

Almoço



Ela não ia largá-lo. As coxas se esforçavam para manter a circulação. Chave nos pés. Ele tinha ânsia de vômito quando confundia o barulho da cama com o ruído da porta. Se ela o soltasse, seria capaz de fugir.

“Ai, ai”, ela gritava. Sem pudor. As pálpebras espremiam um resquício de lágrima. O lábio inferior trepidava. Sentia-se um rei, cravando sua espada até sangrar as entranhas da inimiga. Ela apertava mais as pernas; enlaçava-o. A mão dele espremia aquelas ancas negras, largas e fortes.

Estava quente, abafado. O quarto minúsculo e sem janela, escuro. Não acenderam a luz pela pressa. E também, ninguém desconfiaria de um quarto apagado. A não ser, é claro, pelos gritos. Agudos. Logo abafados pela mão dele.

Ela tentava se virar. Ele insistia na mesma posição. Um rei. Na cabeceira. Em seu banquete real.
Ela mordia, babava os dedos dele. Um pingo de suor. Um pingo salgado de suor dele escorria na cintura dela. Alguns pelos desgarrados colavam-se nos seios, na barriga e sobre o umbigo dela. A nuca morena impregnava o cheiro de bafo dele.

A cama gemia e ele pensava que não haveria problema. Que, como sempre, tudo iria ocorrer bem. Sorria; gostava quando ela mordia sua orelha.

A “patroa” não era de almoçar em casa. Ele, ao contrário, tinha a vantagem de trabalhar por perto. Desde que começou na firma, costumava passar sempre em casa; mesmo que só para tomar um banho rápido.
Era um sádico, pensava. E imaginava que ela, com as unhas a arranhar suas costas, sentia o mesmo.

Para não gozar rápido, visualizava as crianças: o mais velho brincando de boneco. Depois de mais um ou dois movimentos, tentava lembrar de algumas ocupações no trabalho. Por último, lembrava do dia do seu casamento.

A mulher já não falava de outra coisa além do trabalho. Vivia fora, voltava tarde. Era excessivamente promovida. Nos dias em que comemoravam no quarto – luz de velas, ar condicionado, perfume, lingerie –, não conseguia pensar em outra coisa se não nos meios que a mulher utilizava para subir de cargo. Ela devia, sim, dar satisfações particulares ao chefe da empresa.

As pernas negras voltavam a lhe torcer.

Depois tomaria um banho sozinho. Ela passaria suas roupas. De toalha, ia acabando o almoço em silêncio. A comida deliciosa. Merece um aumento, pensava alto. As notícias falavam de jovens se prostituindo aos 15, 14 anos. Ele desligava a TV e fechava os olhos; rogando a Deus para que isso não pudesse acontecer com a caçula.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O pássaro também vermelho


O último grito não saiu da sua boca. Agudo, o som derradeiro veio arrastado pelas unhas. Vermelhas; rasgando, arranhando os azulejos. Era sábado e o expediente dela só iria até a metade do dia. Depois disso, pronto, livre para a farra! Por isso vermelhas as unhas.

O prédio - segundo andar - ficava na frente de um supermercado. Igual o da minha casa, só que maior, mais barulhento. E eu sei como é: vem uns caminhões das estradas, do interior do Estado. A poeira é muita. O barulho também, e sobe junto à poeira. Ambos batendo na vidraça da janela.

Ela estava sozinha. Na varanda não tinha aquelas telas que colocam para criança. O apartamento não era de criança. Também não era de nenhuma avó, que gosta de receber os netos. Era de um músico, eu acho, o cara tinha uns instrumentos em casa.

A gente não tinha certeza de nada... Só nos passaram que estava envolvido com drogas. Vendia, traficava. A gente já tinha o mandato e tudo. Era só chegar e pegar o cara de surpresa.

Eu quem dei o chute na porta. O som de giz no quadro negro. Vi rapidamente, milissegundos. Ela suspirando. A cara assustada. Vi muito rápido. Decorei seu rosto. Se soubesse desenhar, fazia agora mesmo o rosto em desespero. Os olhos... Querendo se agarrar a qualquer coisa.

O som de giz... Dá uma agonia, não dá?

Logo depois que da queda, pousou um pássaro na janela. Não sei. Pode ter sido ela, dizendo qualquer coisa. O canto abafou o som da queda. As penas brilhavam um vermelho.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Espelho



Ela era uma espécie de espelho sincero para dele. Penteando o cabelo, percebe. Mal consegue se olhar. Seu corpo é estranho, a flacidez, textura, tudo é sem jeito, inconcluso, incompleto. E as semanas têm se passado assim: igualmente inconclusas, incompletas, flácidas, sem jeito...

O corpo, principalmente quando dorme, tem se tornado um grande ponto de interrogação. Hoje acordou quebrado; tem dormido de mal jeito.

Com muito mal gosto.

Não tomou banho, ainda é sábado. Luta com os cabelos diante do espelho. Um vampiro, mal consegue se olhar. Já disse isso... E é a pura verdade. Assim como é verdade que ela era o espelho sincero dele.

Desistiu de fazer a barba. Ela o incomoda. Coça bastante.

A projeção insiste em ficar na frente do seu reflexo. Uma Vênus. Nua. Ruiva. Vênus. Já esqueceu completamente do rosto. Pensa em quebrar o espelho, mas ele agora é mais bonito com os traços de Botticelli. Nunca tinha chorado diante de uma pintura. Deve mandar emoldurar o espelho.

"Está mais que certo! Tem que matar!", pausa. "Muito melhor que encher a prisão de gente safada é encharcar o chão com o sangue desses marginais!". O dedo indicador erguido desce junto com a mão. Lentamente, até apontar para o assoalho. Desse jeito não tem muita graça... Sozinho. Quando dizia tais absurdos para ela já esperava o olhar de reprovação, nojo: a boca sentindo um gosto amargurado. Em seguida, os argumentos intermináveis da boa advogada que era... Que é... Ficou dependente disso. Dessa balança. De todo esse processo para se tornar humano.

A barba coça bastante.

Não tem coragem de discordar das próprias palavras. Ela queria salvar o mundo, pensava. Ela queria mesmo salvar o mundo, e ri. Na época eram gargalhadas. E ela dizia que não. Mas queria sim.

Não sei se ainda quer.

Seu próprio cheiro o fazia lembrar... Nunca fez nenhum esporte e qualquer suor hoje remete aos tempos em que suavam juntos.

Afunda as narinas no sovaco.

Foram bons tempos. Deu uma certa experiência. Agora podia dizer, e diz, "conheço bem as mulheres". Sem que o reflexo discorde, fica sem perceber a grande mentira. Que voltou à estaca zero. E as semanas têm se passado assim: como uma grande mentira.

Uma estaca zero.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sopro



"Um sopro", o médico falou. "Não é nada de mais, é só um descompasso, uma arritmia. Coisa pequena, mas tem que prestar atenção".

Debaixo d'água, vejam, consegue deixar todos os músculos relaxados. Algumas bolhas agora escapam das narinas e fazem cócegas.

Silêncio.

Ouve a pulsação. Minutos atrás, dava voltas em torno do lago. Dez, para ser preciso, e correndo, suando, até atirar-se na água fria.

Deve ser a inércia da corrida, pois agora o sangue é que está ensandecido nas veias. Mas o tempo... O tempo parece não se mexer.

Alguém está marcando os minutos que está submerso?

Tenho certeza de que ninguém o olha. O parque fica vazio no verão, as pessoas viajam, esquecem de si. Em dez voltas de corrida, cruzou uma vez com um senhor que passeava com o cachorro igualmente velho.

Não há possibilidade de alguém pular no lago para lhe salvar.

Não será perigoso? O frio pode ter adormecido sua sensibilidade e ele deve estar pensando que está tudo bem quando, na verdade, precisa tomar fôlego. Ou o cansaço, a endorfina, a adrenalina, um demônio... Tenho certeza de que algo está dizendo para ele ficar mais um pouco, empurrando sua cabeça contra o chão. Não será possível.

Um pato! Um pato agora resolve entrar na água. Torço para que ele bique a cabeça dele. Será que está desacordado? "Um sopro", foi o que o médico falou. "Nada de mais", ele disse... E a partir de então o homem se dedicou. Mudou radicalmente sua alimentação e passou a correr todos os dias no parque em frente a sua casa. No início do ano passado, em março, mais ou menos, o parque era cheio de crianças. Pais brincando com os filhos, ensinando a andar de bicicleta. Ele corria sem notar o cansaço. Leve.

Debaixo d'água... Pensou como foi ficando mais difícil sem as crianças. Não gosta de música com exercício, diz que não combina. Prefere escutar os pequenos barulhos do parque, cada vez mais silencioso. Talvez esse silêncio, eu penso, talvez isso que o fez se jogar no lago dessa maneira. Esse silêncio agudo. O silêncio do velho e seu cachorro.

Consegue ouvir sua própria pulsação. Escutou o pato pular dentro d'água, mas agora só se atém a sua pulsação. "Um sopro", lembra das palavras do doutor, "nada de mais". Acredita ter ouvido um descompasso. Como se o peito estivesse soluçando. Ninguém enxergaria se uma lágrima escorregasse do seu olho e afundasse na água doce, invisível.

Pensa agora que não quer ficar velho, nunca sonhou em ser velho. Os velhos não têm tempo para prestar atenção em si. E ele não tem tempo para ser velho. Precisa de estabilidade, esposa, filhos, família e um cachorro que envelhecesse com ele. Lembra do senhor do parque, o senhor desalmado do parque. Melhor um gato, ele pensa.

Acredita em alma. Ainda tem medo e continua acreditando. Diz que a alma não sai do corpo de uma vez, quando vem a morte. Ela vai saindo aos poucos. Isso deixa tudo claro. "Quando criança a pessoa presta mais atenção em si, nos movimentos, no frio, calor... Vai aprendendo a se sentir. Por isso o tempo passa mais devagar. A distração externa é menor. Mas depois dos quinze os anos passam mais rápido, não é o que dizem?", argumentava. "Os anos passam assim, ó", e estalava os dedos. Agora estala os dedos dentro do lago, em câmera lenta.

Finalmente percebe uma pontada na boca do estômago. As paredes dos pulmões se contraindo. Uma só bolha o acompanha na subida, envolvendo do nariz ao queixo. O cabelo acompanha, com um certo retardo, o movimento do corpo. Os olhos se abrem no ar e o ar frio entra de uma vez pela boca.

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Filme com Ceceu Valença: http://www.youtube.com/watch?v=em1_Zdk0C5E

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra


Se aquela árvore caísse, pensou, iria sim ao encontro de Sônia. Ficou olhando atentamente para as folhas dançando na brisa. Os galhos quase imóveis. Depois colocou a cabeça para fora da janela e vigiou o céu. Azul claro. Sorriu. Foi até a estante e limpou a poeira dos livros com o dedo, enquanto escolhia um para si.

Sônia voltava a ficar de pé. Já repetia os mesmos movimentos a 20 minutos: sentar, levantar, olhar no relógio, tossir baixinho, coçar a nuca... Agora começava a se preocupar no que os outros fregueses da cafeteria estariam pensando. Sentou-se novamente, contendo os movimentos.

Nunca tinha lido Moby Dick. Nem nunca se imaginou lendo. Seu interesse por literatura estrangeira era mínimo. E não era apaixonada por romances, nem por baleias. Mas aquela tarde estava feliz de mais. Ela sabia que precisava de um motivo para a depressão. Era necessário mergulhar em alto mar, "se afogar em 'auto mar'", brincava.

Enquanto isso, já era a terceira xícara de Sônia. "Ela não vem", falou para si umas cinquenta vezes. Mas parecia não acreditar muito. Não era possível que houvesse uma pessoa tão insensível, ingrata, tão filha da puta, tão... Bateu a mão fechada na mesa de madeira. O som ecoado fez com que todos do local olhassem para ela. Menos um menininho que tomava sorvete; esse estava a olhando o tempo todo, com o soco, virou o rosto e passou a observando a cara de espanto do pai.

Ainda na introdução do livro, se distraiu com o som dos galhos balançando a um vento mais forte. "Esse sombreiro deve ter uns cem anos, não é possível que resolva tombar hoje", riu da unica falha em seu plano infalível. "Não é possível...". Brincava com o destino. Desde pequena, quando queria muito ir para algum lugar, jogava uma moeda para o alto e dizia: "se a moeda cair em pé no chão, eu não vou". Uma vez teve que ir ao inconveniente chá-de-bebê de uma conhecida, tudo porque o apartamento da frente resolveu pegar fogo.

Deve estar atrasada, pensava. Sua perna direita não parava de se mexer. Os olhos conferiam qualquer pessoa que passasse pela calçada. Chegou a acenar para duas mulheres; uma delas não se parecia nada com Maria. Depois de um tempo agoniada, resolver passar a limpo, ela mesma, os textos que ficaram de discutir. Pegou uma caneta em sua bolsa e riscava as palavras com uma linha fina, para que ainda soubesse o que estava lá. Sônia era a insegurança em pessoa. Sabia, e todos diziam que ela escrevia melhor do que Maria. Mas a irmã era mais despojada, mais exibida. E Sônia ficara dependente do seu crivo.

Maria não virava mais as páginas. Por um tempo desejou ouvir um trovão, uma serra elétrica ou um bater de machado. Pensou no que estava fazendo e tentou se perguntar quando tinha se tornado tão hostil. Mas a própria pergunta engasgava em seu orgulho. E ela fingia para si que estava lendo o livro tranquila em sua poltrona nova.

Sônia não aguentou. Sem perceber, estava riscando frases, parágrafos inteiros. Com o tremor da perna, a linha saia torta. A mania de organização fez com que ela parasse com o massacre literário. "Vou até lá!", disse ela em voz alta. Pagou os cinco cafés e se dirigiu ao carro.

Maria tinha se resolvido: lia o livro em voz alta. Começou baixinho, mas já estava em pé, gritando cada palavra. Andando pela casa e voltando as páginas para reler compulsivamente. Ela escuta um som alto. Um estrondo vindo da rua. Corre para ver o que estava acontecendo. Quando sua vista alcança a janela, não acredita: a árvore não estava lá. Sorri. Do jeito que estava, desce as escadas correndo para pegar um taxi. Enquanto descia, preparava uma bela desculpa para seu atraso.

Sônia já tinha pego o carro a um tempo. Dirigia furiosa, costurando o trânsito. Não gostava de dirigir. O carro era do seu marido e ela usava em ocasiões extremas; como essa, em que quase se atrasou para o encontro com sua irmã na cafeteria. Bastou-lhe uma curva. Um fusca trancou sua passagem e ela virou o volante muito rápido.

"Perdeu o controle", dizia o homem para Maria. A batida foi tão violenta que derrubou o sombreiro, de mais de cem anos.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

domingo, 9 de janeiro de 2011

Tia Dulce


Eram onze formigas em direção à parede. Subiriam até quase o teto, até entrar pelo buraco. Um trajeto comum. Engraçado como eram rápidas. A medir pelo seu tamanho, subir até o teto era uma distância enorme. Camelos em miniaturas, atravessando o deserto de tijolo aparente.

Agenda do consultório era lotadíssima... Só ali, na privada, podia arrumar um tempo para observar formigas. Minutos de merda e contemplação. Todos os dias, o mesmo trajeto.

Se uma viesse na contra-mão, um rápido toque de antenas corrigiria a trajetória. Ah, se o transito fosse assim! Daí pensava que as agendas, de cada uma delas, talvez fossem mais ocupadas que a dele. Sacudia a cabeça. Achava estranho encarar formigas como pessoas.

Principalmente pelo desconforto, em ser tão maior do que elas, em poder mudar aquele tracejar de soldado com o dedo mindinho. Ser grande era uma sina. Se pudesse, seria criança sempre. "Coma para crescer!", dizia tia Dulce. "Se eu crescer e quiser encolher de novo?".

Foi criado por ela. A madrinha. Irmã mais velha da mãe. Morava na casa da frente. Comia os farelos de lembrança daquele lugar. Sobrava o interior (da casa) de tia Dulce e apenas a fachada da sua casa.

Seus pais trabalhavam bastante. E as tardes eram mais brandas na casa da tia. "Tia Dulce, te adoça", brincava a mãe quando ia buscar o menino para o jantar.

Domingo vazio. Formigas trabalhando sem parar. A filha já não largava o celular cor-de-rosa. Presente ingrato e cruelmente necessário. ''Todo menina tem um, pai!''. Aos 12 anos, a filha quer ser tratada como uma adulta. Bastava-lhe um tropeço, uma topada para que mendigasse um beijinho, um gelinho, um abracinho... Ele se rendia. Derretido.

Tia Dulce ainda vivia na vila. No interior. Queria uma infância daquela para sua filha. A casa era a mesma. A dos seus pais fora demolida e o lugar virou um mercadinho. Ele pegou o carro e partiu viagem.

"Tia, vim lhe fazer uma visita". Ela o olhou com estranhamento, mas, em seguida abriu um sorriso. "É Felipe?".

"A senhora vai bem?", ela sorria. Nos olhos, um azul desbotado. E o silêncio dos estranhos.

"Dona Dulce, vamos?", a cozinheira chamava para dormir. "Vamos, Dona Dulce", ela respondia, se levantava e saia. "Apareça mais, Felipe, a casa é sua".

"Tá esquecida", dizia a cozinheira na volta. "O senhor é o doutor Felipe mesmo?". "Sim...". "Ela chama todos de Felipe. O entregador de água, o carteiro. A maioria daqui já sabe, tem uns que acham graça".

Com as chave do carro na mão, olhava o mercardinho com força. O movimento da rua. As motos barulhentas. O homem fechando as portas de ferro e graxa. O céu azul desbotado."Não fecha a porta", disse para a cozinheira. Entrou na casa. Entrou no quarto de visitas. Dormiu.