domingo, 13 de março de 2011

Entre a chuva e a fumaça


Havia se estabelecido uma certa rotina no corpo de bombeiros. Em tempos chuvosos a televisão costumava ficar ligada, os militares, menos arrumados. O batalhão reduzido não precisaria se preocupar com as matas secas que margeavam a cidade, mas com as casas sim: as casas ainda pegavam fogo esporadicamente. Foi o chamado. Os soldados correram organizados. A notícia veio chegando no caminho. A chuva tinha dado uma trégua, mas sem problemas, chuva não costuma apagar edifícios.


Dez andares, o fogo vinha do quinto e se estendia entre o sétimo e o terceiro. Uma só vítima. Solteiro, fumante, provável causador do incêndio. O clarão se apagava, as mangueiras eram guardadas, a imprensa ainda tinha pego algumas cenas emocionantes: das pessoas chorando de pijama, cobertor e um casal com roupas de couro. Apenas uma pessoa não foi resgatada com vida, a reporter anunciava.


O dia não tinha sido paciente com ele. Marcos não sabia o motivo, mas não conseguiu fazer nada direito. Tanto no trabalho, manchando a camisa com café, quanto em casa, na cozinha, deixando queimar o ovo na panela. E não comeu mais nada. Ao anoitecer, chovia forte. Teimando que algo desse certo, resolveu ir ao cinema.


A chuva era densa. Somada a uma grossa neblina. A praça ao lado estava escura, os postes se revezavam entre acesos e apagados; outros piscavam numa frequência incerta.


Na rua, viu um homem encostado no muro de uma casa. Fumando. Um vulto. Mudou de calçada.


O som da água só lembrava o medo, de quando era menor e morava no Alto de Santa Teresa: ao primeiro alarido da chuva, sua mãe o abraçava com força, segurando um rosário.


Os degraus da entrada do cinema molhados, a água escorria até o bueiro, que, entupido, enchia a rua com um líquido suspeito. Embora chovesse, a fila era grande. Pessoas aglomeradas se esbarravam com seus guarda-chuvas e sombrinhas. Marcos, de capa, olhava para trás de vez em quando até o momento em que entrou, finalmente, no cinema, os sapatos e a barra da calça encharcados.


Na poltrona, desejou muito fumar, mas não podia. Esperou ansioso o momento de voltar para casa. Esse homem estranho na trama, acho que é um assassino, comentava a senhora ao lado. Marcos respondeu com um olhar e um pigarro. Mesmo não prestando atenção ao filme, o comentário da velha lhe causava calafrios.


Ao acender das luzes, sentiu-se mais aliviado. Não chovia mais. A rua deserta e molhada o fazia sentir angústia. Teve medo de que, se escorregasse no lodo, não pudesse ser socorrido por ninguém. Voltou para casa. Não adiantava mais insistir.


O despertador soava mais alto. Amanhecia de uma forma estranha. Fazia calor. Por baixo da porta, já se via a claridade invadindo o quarto. Com a mesma roupa, bateu com a mão no despertador, que não parou de tocar. Não parou, pois nem chegou a começar. O cheiro de fumaça agora lhe dizia tudo. E o calor invadia seu corpo.


Do lado de fora do prédio, correu pela escada de emergência. Os vizinhos gritavam, choravam, alguns estavam nus, outros de cobertor, pijama, cueca, e um casal em roupas de couro.


Ainda era noite.


O fogo, impiedoso, não escutava ninguém. Marcos, sozinho, calado, botou as mãos nos bolsos, jogou fora a chave de casa e a carteira. Seguiu andando pela rua.


Encostou-se em um muro de tijolos e lodo aparentes. Acendeu um cigarro.


A chuva voltou a cair.