segunda-feira, 28 de março de 2011

Vácuo


A brisa passou e roubou a memória dela. Um vácuo de um ônibus que, martelando o ar, levou o cabelo a voar na fumaça escura. Foi só o tempo de fechar os olhos e pronto, não sabia mais de nada.

Não foi um branco total, lembrava das coisas, e do nome das coisas. Sem se exaltar, começou a pensar o que podia em voz alta. Carro, pássaro, janela, prédio, rua, ou estrada, ou pista, árvore... Adentrou-se em coisas mais complicadas como saudade, distância, morte... Colocou a mão no bolso do vestido.

Repetia baixinho "bolso" e "vestido", olhando as pessoas da calçada, "vergonha". Maria de Fátima Aparecida Peixoto era um nome muito estranho para ser seu. "Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores"; um homem na bicicleta passava junto "amém!", ela calava.

O documento devia ser de outra pessoa, aliais, nem o rosto da foto era bem como se recordava.

Numa das mãos, um guarda-chuva fechado em dia de sol. Ao perceber, o abriu com vigor; lembrando de uma notícia sobre câncer de pele.

Devia estar doente. Isso ou as memórias teriam subido no primeiro ônibus que passou.

Enquanto o ponto enchia e esvaziava de pessoas, ela se perguntava o que fazia ali. Talvez se voltasse o caminho, lembrasse de alguma coisa. Pra que lado, pensou imóvel. Os pés estacados no chão; o guarda-chuva sobre a cabeça. Quis gritar.

Os carros zuniam, as motos rugiam e a cada ônibus que passava Maria colocava a mão na testa, cerrava os olhos, mordia os lábios. Nos meio-tempos, tentava não esquecer do que tinha lembrado: "saudade, distância, morte. Ônibus, carro, estrada. Saudade, distância..." Algumas imagens foram lhe surgindo. Nada muito conclusivo. Descascava camadas de esquecimento. "Morte, ônibus, carro, distância, saudade..."

Era como se lembrasse, não a coisa em si, mas a impressão. Uma lágrima escorregava, ''maçã do rosto''. Outra entrava na boca, ''salgado, doce''. O joelho foi ficando fraco e ela logo estaria caída aos prantos no chão.

Olhava os centavos que saiam do bolso, atirados com força na calçada. Ouvia o barulho da chave de casa, o dinheiro voando junto a panfletos de igreja evangélica, a imagem de Nossa Senhora no escapulário... Não se espantou mais com as pessoas olhando. Nem se intimidou com a Guarda Municipal, fazendo ronda ali perto. As contas do rosário escorriam até o fundo do esgoto. Escuro. Tentava, fazia esforço para escutá-las batendo na água podre.