sábado, 1 de setembro de 2012

A briga


Vi dois meninos brigando na rua hoje.
Na rua não seria possível, seria miragem hoje em dia.

Estavam numa praça, ok. Eles estavam lá sim.

Um deles rodava pião e era engraçado. Um menino de hoje querer algo com pião...

Mas essa história é assim, eram dois meninos nessa praça e um deles tinha um pião na mão.

E era incrível! Uma coisa de louco. Equilibrista em corda bamba, bailarino emadeirado na palma da mão.

Não deve ter sido hoje e eu disse que tinha sido. Foi um dia, nessa praça bonita, sabe? Tinha uma mulher lendo um livro, tinha cachorro e a coisa toda…

O menino do pião e um outro de controle remoto e um carro que andava sozinho. Um carro engraçado, fazia um zumbido, vertia obstáculos.

Claro que devia dar algum fascínio, diante de um pobre pião, um carro de controle? Que coisa mais amadurecida, não é? Coisa de adulto, um carro.

Mas nada, menino. O muleque era craque. Equilibrava o peão no dedo mindinho da mão e do pé!
Era o cão! Ia lá ter inveja de carro coisa nenhuma!

O do carrinho só tinha o carrinho. Enjoou. Enjoou de ficar sentado, controlando de longe. Não sei o que deu no encapetado que jogou o carrinho pra cima do peão do outro.

Normalmente isso não quebraria, não seria possível. Mas esse peão, não sei, o peão dessa história se espatifou em cinco pedaços.

E o prego escapuliu e furou o olho do menino que dirigia o carrinho! Furou não... mas devia!

***

Um amigo estava furioso. No trânsito. Ficou preso, assistido um bando de ativista em protesto.

Perguntei, o que é a vida lá fora, meu velho? Não é esperar para ver os pequenos protestos de meu deus? Quando a nuvem protesta com o céu e forma a chuva? E a luz protesta contra sua brancura, cruza a chuva e faz o arco-iris. O dia com a noite, o céu e o chão... Estou sendo romântico de mais? Podia saltitar um pouco, para a coisa ficar mais engraçada. Falo assim, de braços abertos, que tal?

O bem e o mal... Certo errado... Não sei.

Criamos os filhos para que eles comecem a protestar um pouco contra nós mesmos. Era sobre o que o danado desse protesto?

Era... Ciclistas... Um deles usava uma roupa muito engraçada, cê precisava ver.

Perdi… Era muito assim?

Tinha umas duzentas. Coisa de louco, uma atrás da outra correndo, um cardume... E o trânsito parado por elas.

O trânsito não para todo dia?

Só uma semana depois fui saber do ocorrido. Dos carros buzinando em frente ao hospital público. Que vergonha para um pai de família que dava carona ao seu filho.

O menino nem aí, distraído com as bicicletas, fascinado. E o pai rompendo o silêncio com a mão pesada de ódio no volante. Contra quem?

Quebrando o silêncio sacro dos leitos de um hospital. Ainda existem coisas sagradas, não existem? Quem precisa de paz pra se curar é incomodado com quem também precisa de alguma paz de espírito. Me dá um pouco de medo.

São a essas pessoas, confusas, estressadas, impacientes, intolerantes… São para elas que entregamos máquinas de toneladas.

Que reservamos terra infértil para a sua passagem. Olha! Que coisa! Tapete de piche, vossas majestades!

Não existe protesto que não incomode.
Se a massa quebra, deixa de ser massa.

A coisa quando engrena vira uma centopéia,
duzentoscleta,
centoscleta,
ciclotopéia,
centicicleta,

é uma coisa andante, só. Com aquele grito único, aquele pedido do fundo. Da voz oca, na beira do estômago.

Um grito, talvez, que vem do frio na barriga! 
Daquele medo da morte, quando um motorista inconsequente passa raspando.
E ele fica entre o abismo das valas de esgoto e o touro de metal e fibra de vidro.

Um frio na espinha pensar uma coisa dessas!

***

Na minha cidade, a coisa não é assim, sabe?

Minha cidade as ruas são gramados. Não tem carro, tem futebol. Cocô de cachorro é adubo. E tomate dá na esquina.

Só os trilhos ligam ponto a ponto. E param sempre no ponto. Estão sempre em ponto. É assim e pronto, hehehe... 
Não se paga gasolina, o bicho é elétrico, uma coisa de outro mundo!

Ah, o rio é limpo! Vou comprar meu caiaque, que é a bicicleta de água doce.

Penso em voltar pra lá. Tem gente por aqui, nessa cidade grande e grotesca, que pensa que tá crescendo na vida.
Preso, numa saleta, de som e ar ligado.

Comprou um carro que prometeu velocidade!!!
Viu na propaganda o desempenho, a potência.
Se vê obrigado a ficar parado. É tortura mesmo. Pense.

E os pobres coitados nos ônibus? Pior ainda. Meu deus, se não tivesse tanto carro assim talvez a coisa andasse, não?

O jogo hipnótico, a quantidade de máquina, numa sincronia de rugidos, baforando fumaças, bradando ameaças.
Barbeiro! Babaca!

O que espero é que eles acordem.

Vejam o ciclista na rua, sozinho, sem a massa que gritava, inofensivo, e pense que tudo certo, um carro a menos, eu sou o trânsito, eu não sou exemplo e não contribuo. 

Ou um pedestre atravessando a rua. Sem correr, sem correr, sem correr, não precisa correr, amigo, sem medo...

Pense: fico com raiva do trânsito, mas é isso. O protesto é uma pedra no sapato. Não seria melhor se tivessem mais ciclistas no futuro e menos motoristas? Menos barulho de motor. Menos boca de escape desdentada. Menos bolha social. Mais saúde. E uma velocidade precisa, certeira, na sua vida; tempo único para os trajetos. Um bonde elétrico aqui para longas distâncias, uma magrelinha para as pequenas e médias. Yupiii, até os velhinhos como eu pedalam, que coisa!

Foi assim que conseguimos na nossa cidade, anos atrás.
E depois vieram as outras coisas. A limpeza do rio e tudo mais.

Lá todo mundo anda descalço e, nas horas vagas, é possível ver pessoas passeando só pelo gosto do passeio.
Não é linda?

É mesmo uma coisa! Ninguém briga com ninguém. Ah! Só essa briga de hoje que eu vi. Não foi hoje, foi um dia desses. Eu vi. Numa praça dessas. Mas era briga de menino, briga besta de menino...

Essa pode!

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*Para a bicicletada do dia 31.08.12