segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sopro



"Um sopro", o médico falou. "Não é nada de mais, é só um descompasso, uma arritmia. Coisa pequena, mas tem que prestar atenção".

Debaixo d'água, vejam, consegue deixar todos os músculos relaxados. Algumas bolhas agora escapam das narinas e fazem cócegas.

Silêncio.

Ouve a pulsação. Minutos atrás, dava voltas em torno do lago. Dez, para ser preciso, e correndo, suando, até atirar-se na água fria.

Deve ser a inércia da corrida, pois agora o sangue é que está ensandecido nas veias. Mas o tempo... O tempo parece não se mexer.

Alguém está marcando os minutos que está submerso?

Tenho certeza de que ninguém o olha. O parque fica vazio no verão, as pessoas viajam, esquecem de si. Em dez voltas de corrida, cruzou uma vez com um senhor que passeava com o cachorro igualmente velho.

Não há possibilidade de alguém pular no lago para lhe salvar.

Não será perigoso? O frio pode ter adormecido sua sensibilidade e ele deve estar pensando que está tudo bem quando, na verdade, precisa tomar fôlego. Ou o cansaço, a endorfina, a adrenalina, um demônio... Tenho certeza de que algo está dizendo para ele ficar mais um pouco, empurrando sua cabeça contra o chão. Não será possível.

Um pato! Um pato agora resolve entrar na água. Torço para que ele bique a cabeça dele. Será que está desacordado? "Um sopro", foi o que o médico falou. "Nada de mais", ele disse... E a partir de então o homem se dedicou. Mudou radicalmente sua alimentação e passou a correr todos os dias no parque em frente a sua casa. No início do ano passado, em março, mais ou menos, o parque era cheio de crianças. Pais brincando com os filhos, ensinando a andar de bicicleta. Ele corria sem notar o cansaço. Leve.

Debaixo d'água... Pensou como foi ficando mais difícil sem as crianças. Não gosta de música com exercício, diz que não combina. Prefere escutar os pequenos barulhos do parque, cada vez mais silencioso. Talvez esse silêncio, eu penso, talvez isso que o fez se jogar no lago dessa maneira. Esse silêncio agudo. O silêncio do velho e seu cachorro.

Consegue ouvir sua própria pulsação. Escutou o pato pular dentro d'água, mas agora só se atém a sua pulsação. "Um sopro", lembra das palavras do doutor, "nada de mais". Acredita ter ouvido um descompasso. Como se o peito estivesse soluçando. Ninguém enxergaria se uma lágrima escorregasse do seu olho e afundasse na água doce, invisível.

Pensa agora que não quer ficar velho, nunca sonhou em ser velho. Os velhos não têm tempo para prestar atenção em si. E ele não tem tempo para ser velho. Precisa de estabilidade, esposa, filhos, família e um cachorro que envelhecesse com ele. Lembra do senhor do parque, o senhor desalmado do parque. Melhor um gato, ele pensa.

Acredita em alma. Ainda tem medo e continua acreditando. Diz que a alma não sai do corpo de uma vez, quando vem a morte. Ela vai saindo aos poucos. Isso deixa tudo claro. "Quando criança a pessoa presta mais atenção em si, nos movimentos, no frio, calor... Vai aprendendo a se sentir. Por isso o tempo passa mais devagar. A distração externa é menor. Mas depois dos quinze os anos passam mais rápido, não é o que dizem?", argumentava. "Os anos passam assim, ó", e estalava os dedos. Agora estala os dedos dentro do lago, em câmera lenta.

Finalmente percebe uma pontada na boca do estômago. As paredes dos pulmões se contraindo. Uma só bolha o acompanha na subida, envolvendo do nariz ao queixo. O cabelo acompanha, com um certo retardo, o movimento do corpo. Os olhos se abrem no ar e o ar frio entra de uma vez pela boca.

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Filme com Ceceu Valença: http://www.youtube.com/watch?v=em1_Zdk0C5E