quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Espelho



Ela era uma espécie de espelho sincero para dele. Penteando o cabelo, percebe. Mal consegue se olhar. Seu corpo é estranho, a flacidez, textura, tudo é sem jeito, inconcluso, incompleto. E as semanas têm se passado assim: igualmente inconclusas, incompletas, flácidas, sem jeito...

O corpo, principalmente quando dorme, tem se tornado um grande ponto de interrogação. Hoje acordou quebrado; tem dormido de mal jeito.

Com muito mal gosto.

Não tomou banho, ainda é sábado. Luta com os cabelos diante do espelho. Um vampiro, mal consegue se olhar. Já disse isso... E é a pura verdade. Assim como é verdade que ela era o espelho sincero dele.

Desistiu de fazer a barba. Ela o incomoda. Coça bastante.

A projeção insiste em ficar na frente do seu reflexo. Uma Vênus. Nua. Ruiva. Vênus. Já esqueceu completamente do rosto. Pensa em quebrar o espelho, mas ele agora é mais bonito com os traços de Botticelli. Nunca tinha chorado diante de uma pintura. Deve mandar emoldurar o espelho.

"Está mais que certo! Tem que matar!", pausa. "Muito melhor que encher a prisão de gente safada é encharcar o chão com o sangue desses marginais!". O dedo indicador erguido desce junto com a mão. Lentamente, até apontar para o assoalho. Desse jeito não tem muita graça... Sozinho. Quando dizia tais absurdos para ela já esperava o olhar de reprovação, nojo: a boca sentindo um gosto amargurado. Em seguida, os argumentos intermináveis da boa advogada que era... Que é... Ficou dependente disso. Dessa balança. De todo esse processo para se tornar humano.

A barba coça bastante.

Não tem coragem de discordar das próprias palavras. Ela queria salvar o mundo, pensava. Ela queria mesmo salvar o mundo, e ri. Na época eram gargalhadas. E ela dizia que não. Mas queria sim.

Não sei se ainda quer.

Seu próprio cheiro o fazia lembrar... Nunca fez nenhum esporte e qualquer suor hoje remete aos tempos em que suavam juntos.

Afunda as narinas no sovaco.

Foram bons tempos. Deu uma certa experiência. Agora podia dizer, e diz, "conheço bem as mulheres". Sem que o reflexo discorde, fica sem perceber a grande mentira. Que voltou à estaca zero. E as semanas têm se passado assim: como uma grande mentira.

Uma estaca zero.