segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Bicicleta, o cão




Ele senta no computador. O ventilador bem em cima da cabeça. Girando. Se levanta, pega a camisa no cabide, coloca ao contrário. Volta a sentar.

Sente que o peito aperta; algo entre a guela, pomo, pescoço. Etiqueta na frente. Feito corda de algodão estirada. Era a camisa ao avesso.

Curta, sem manga. Ele cruza os braços por dentro do pano. Trocando os braços morenos por dentro do pano. Cada braço prum lado; mudando os lados dos braços. 

A cabeça pulou fora, a camisa deu um giro… meio giro… Cento e oitenta! Lá em cima. Camisa preta e mãos ao alto.

Um estalo.

Dois braços bailarinos. Esquerda na esquerda! Direita na direita! Pousam pondo a camisa e a cabeça no lugar. Não pode encostar na cadeira.

A manga curta. Sem manga. O suor já seco. O ventilador passou tanto tempo insistente que tinha secado todo suor.

Abre um documento de texto.

Ciclista, apareça! Vamos mostrar que existimos. Que estamos presentes. Que, de qualquer maneira, não sou obstáculo. Não sou brincadeira. Caio, sou caco. Cuido do peito, corro no asfalto. Tombo, me arranho, me quedo na grama com a alça do cachorro presa na roda. A coleira, colina, grama, jardim… Menina! Vai se machucar! Assim você se machú... Cuidá...

E o cachorro rola abaixo, ela capota por cima. Pula fora, grito, ui, e risada. 

Chora. Um susto, não foi nada! Limpa aqui, acolá. Vai sarar… Vai secar. Que besteira, que chorona! Nem parece que tirou as rodinhas!

Veja, mamãe, nem quando a coleira aperta, o cachorro late… Oooolha, ele também tem uma ferida. Já deu o nome dele?

Não sei… Bicicleta! - Tá doida, menina?

A risada comia no centro. Era de um tempo em que mertiolate ardia. Não tinha problema! Se a ferida de Bicicleta não arde, a dela também nem doía!

Não foi nada, tá vendo? Não foi nada...

Sem que pudesse encostar o braço no braço da cadeira, ajusta a coluna no encosto. Abaixa a luminosidade da tela. A queda do cotovelo… O asfalto é pior que colina. Estava inteiro. O braço arranhado. Doído… Com sede, cansado, mas isso é todo dia mesmo, isso não tem nem problema.

A cadeira do computador… Ficou até mais fácil dele andar, rolando a cadeira no chão liso. Indo até o outro canto do quarto, passando na porta, pelo corredor, na sala e cozinha, toc, toc, toc, agora o chão de azulejo.

Abre a geladeira e pega uma garrafa de whisky cheia de água gelada. Faltava um banho. 

E coragem pra banho?

Depois de alguns goles, derramou - molhando o chão mesmo - a água gelada nos arranhões. Preciso entregar o texto pra editora. Saiu mais cedo do bar. Sem pressa, tranquilo… Filho da pú...

Mas ainda precisa entregar o texto para a editora. Nem foi nada. Podia ter sido… Saiu tremendo na rua. O motorista voou na frente, nem nada. Ele demorou pra limpar a areia do braço...

Ela sonhou outro dia com algo estranho. Dormia na cama, ao lado da mãe. A mãe dormindo e a pequena franzia os olhos, mexia as pernas, algum pesadelo. Um monstro terrível. E um grito bem alto! Seco no som, molhado nos olhos.

QUE FOI MENINA?!

E a menina acordou. Sem lembrar nada. Tá ardendo é, filha? Ela nem ouviu, virou os olhinhos, voltou a dormir. Deve ter tido um sonho melhor depois.

No outro dia, brincando com Bici. Mamãe, lembrei!

E contou que era um redemoinho de vento, colorido de longe. E ela chegava junto, e tudo começava a subir, poeira, terra, bem rápido, tudo ficava escuro e puxava as rodinhas da bicicleta.

Mas depois me puxava também, mamãe, depois é que me puxava forte.

Você quer, a gente coloca as rodinhas novamente, quer?

Não, não sou medrosa!

Depois de um acerto, um acordo firmado, passou a andar com o pé escorado no lombo de Bici. Não sabia quem tinha o comando. Se ele corria para a direita e ela girava o guidom pro outro lado, tombariam no centro. Quase só aconteceu uma vez. Ainda bem devagar.

Lembro que com dois dias eles já tinham um código próprio, direções, direita, esquerda, parar, marcha ré. No terceiro ela trocou o pé canhoto pela mão canhota. Depois do quarto dia, trocou o lombo pela corda da coleira, voltando a pedalar como sempre, juntos.

Os dois com a mesma casquinha nas feridas.

Ele, sem saber terminar o conto. Pensa em tomar a tetânica. Tem medo de estar contaminado por alguma doença da cidade. Ao menos não tem essa, da velocidade.

Vou passar madrugada escrevendo.

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*Em luto às mortes dessa semana.