domingo, 2 de janeiro de 2011

A procura


"Estou procurando...", falava em tom ameno, com os dois olhos girando numa roleta. Sua mão direita encostava nos lábios secos. Lentamente. Tudo em si era lento, menos os dois olhos. Esses, muito embora, de vez em quando paravam. E, vagarosamente, cobriam-se com as pálpebras. A frenesia agora contaminava a mão, que saia da boca para coçar atrás da cabeça. "Estou...".
Aquele banco sempre o confortara. Era o seu banco, embora a Prefeitura da Cidade do Recife, juntamente com a CTTU (Companhia de Trânsito e Transporte Urbano), alegasse que o local era público. Mesmo assim, ninguém nunca o incomodou, penso.
Noites e dias varava como um disco arranhado: "estou procurando...". Se não fosse por pessoas caridosas como eu, na certa passaria fome. Depois de arrancar toda carne dos dedos já roídos, sobrando somente os ossos. Que horror!
Ele vestia uma camisa branca, amarelada, de botão. Encardida, amassada. Uma calça preta, dobrada até o joelho. Apenas uma sandália Havaianas e o outro pé desnudo. "O senhor tem nome?". Olhava-me com os olhos confusos. Engolia seco. "Um nome, qual é seu nome?". Era como um cão. Suas sobrancelhas franzidas... Assim que via o tupperware com comida, estendia as mãos. "Estou procurando...", dizia. "O que o senhor procura?". Era um cão. Fazia barulho comendo, arrancava a pele da galinha vorazmente. E não limpava o rosto.
"Dona Nice, queria que a senhora fizesse um vestidinho igual a esse aqui, ó", a cliente mostrava então a revista da qual eu devia copiar a peça de roupa. E eu copiava. Cada detalhe.
Ele devia ser um porteiro de algum prédio de rico. A barba e o cabelo longos, assanhados. Passava a noite na frente de uma televisão com as câmeras de segurança, procurando um possível ladrão. Podia, talvez, ser um vendedor do varejo, daqueles que passam o dia ditando as ofertas em um microfone. "Estou procurando...".
Aprendi a costurar com minha avó. Sempre fui muito boa com trabalhos manuais. Era muito boa... agora com a máquina de costura elétrica, qualquer uma. "Vamos ver o cabimento. O que acha?". "Ficou linda, dona Nice!".
Das dez da manhã até o meio dia, aproximadamente, o sol fica quase constante em cima dele. Nada, ninguém o perturbava. Ele nem olhava para os carros. Devia ser um motorista, um chofer. Deve ter esquecido a chave do carro em algum lugar, não teve coragem de contar ao seu patrão o absurdo, nem de voltar para casa sem emprego. Da minha janela eu podia ver a rua, os postes, a calçada, a parada de ônibus do outro lado da rua, algumas árvores, um colégio... Depois dele, só conseguia enxergá-lo. Esse homem, pendurado em um vazio, e o vazio que ele carregava.
Nesse dia eu estava fazendo mais um vestido para uma de minhas sobrinhas, aproveito sempre a falta de demanda para costurar para elas. Marina... Ia ser seu aniversário. Ela me disse uma vez que queria um vestido igual ao de Amanda-da-novela. Eu até tinha guardado uma foto de uma revista... Procurei na minha gaveta, não estava lá. Nem no armário, na cômoda, prateleira... Não estava em lugar nenhum. O aniversário de Nina estava próximo... De vez em quando eu deixo as referências em baixo da máquina mesmo. Só tinha uns papeis, contas atrasadas.
O homem continuava parado, sentado, debaixo do sol, sujo, fedendo, com a barba e o cabelo grande, sem sapato, a calça dobrada, as unhas encardidas, curvo, com aquela mão nojenta, ora na boca, ora na cabeça, a roupa manchada, amassada, repetindo, irritantemente, os mesmos movimentos, a mesma frase, pergunta, olhos negros, confusos, se ninando para frente, trás e para frente, "estou procurando, estou procurando, estou procurando...".
"O QUÊ?!?!"
Do outro lado da rua, finalmente me olhava. Acho que me olhava. "PROCURANDO O QUÊ, SEU MALUCO?!?!". Era um cão, estou certa disso. Finalmente me olhava. Junto com algumas pessoas da rua, me olhava. Foi quando eu resolvi telefonar... Mas eles disseram que não podiam fazer nada, estavam sem vagas... E se ele não tinha ferido ninguém, não causava mau nenhum... Tentei arrastar minha máquina de costura para o canto, tirá-la da frente da janela. Mas a idade... Ela é muito pesada, a mesa também é robusta... Minhas costas... Saí de casa com o tupperware cheio de comida, estava chegando a hora do almoço. "TOMA!". Estendeu a mão. "Se não fosse eu... olha, sei não, viu?". Ele comeu tudo, não limpou o rosto. Fedia.
Tinha 1,74 de altura. 1,18... 1,20 de cintura. Calçava 39. E depois de tomado banho, limpo, eu ter cortado-lhe o cabelo, feito-lhe a barba - sou boa com trabalhos manuais. Voltou sozinho para o ponto de ônibus. Camisa azul, listrada, de botão, sapatos pretos, calça quadriculada, bege.
Hoje, acho que olhou pra mim. Acho que olhou e acenou assim que me viu. Peguei meus óculos. Acho que ele tentou me acenar. Me viu, lembrou de mim e acenou. Me levantei. Abriu a boca em meio ao aceno. Iria dizer "obrigado por tudo", iria dizer qualquer coisa assim... Eu estava por retribuir o adeus, mas um ônibus vermelho parou na sua frente.
E ele sumiu.